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Talvez o fato de eu ser daltônico tenha contribuído para que meu laboratório colorido chafurdasse num Amazonas de dívidas e culminasse num retumbante fracasso. Conseguia sobreviver graças às fotos preto & branco, que a Flash Light (nome gringo pra impressionar cliente) atendia satisfatoriamente grandes empresas, mas em 1980 a maioria dos jornais já estava adotando fotos coloridas. Em suma, vendi todo laboratório a muito custo para os sucateiros da Augusta de baixo e voltei à vida de redator.

Até que minha irmã médica comentou algo sobre um grande hospital de São Paulo estar à procura de um fotógrafo e laboratorista. Assim, restava uma esperança: fotografar cirurgias, cadáveres e pedaços de gente que, pra não me enjoar completamente, eu carinhosamente chamava de “human repair parts”. Quando cheguei no hospital encontrei um espaço enorme para montar um belíssimo laboratório fotográfico e ainda me deram carta branca para e operacionalizar o sistema de documentação com equipamento de primeira linha. Ampliadores Durst, peças japonesas Hansa, tudo importado e novinho. Para coroar uma vida escolar totalmente desesperadora – de ruim – batizei meu novo empreendimento com o pomposo nome de “Centro de Documentação Fotográfica” e pedi pra minha mãe fazer um vistoso avental com um logotipo bem grande CDF bordado na frente.

Assim eu desfilava pelo hospital, com nariz em pé, exibindo meu avental CDF imaculadamente branco e me sentia um autêntico para-médico com grandes chances de me tornar um paraplégico por causa das confusões armadas naquele nosocômio. Quando eu queria posar de médico de verdade roubava um estetoscópio do meu irmão (também médico) e ficava rondando todos os andares atrás das enfermeiras. Também fiquei amigo de vários pacientes, sobretudo as mais moças e funcionava como espécie de contrabandista de guloseimas entre as refeições. Minha farsa foi descoberta quando estava despachadamente tirando uma soneca na cama ao lado de uma paciente e o médico de verdade entrou. Voltei ao laboratório e às fotos de desmanche de gente com as duas orelhas ardentes.

Minha função era basicamente atuar como um documentarista de tudo que fosse interessante – e várias vezes bizarro – dentro do hospital. As imagens, tanto filme 16 mm, quanto fotografias, eram usadas em aulas ou para literatura específica. Evitarei entrar em detalhes para ninguém vomitar na tela, mas alguns exemplos de trabalho rotineiro eram as fotografias detalhadas de cérebro, várias de coração, estômago, ortopédicas de todos os tipos e casos chamados assepticamente de “não-rotineiros”, mas que eu chamava de bizarrices de primeiro grau, tais como um motorista com uma barra de ferro atravessada na cabeça, que chegou falando e andando no hospital. Ou uma criança que decidiu limpar o aquário e à falta de um lugar pra colocar o peixe decidiu prender entre os dentes. O pobre menino descobriu que não tinha menor vocação pra pelicano e quase morreu com o dourado entalado na traquéia.

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Os casos são tantos que dariam um livro. Aliás, uma comédia, como na noite que dei de cara com o Batman com a testa sangrando na entrada do pronto socorro, seguido por um super-homem de nariz quebrado e a mulher-maravilha berrando aos prantos. Um enfermeiro me esclareceu:

– Briga em festa a fantasia!

Essa ocupação me manteve por 18 meses tempo suficiente para aprender muito sobre a natureza humana e a natureza sarcástica de alguns médicos, principalmente os anestesistas! Vi vários motociclistas chegarem estropiados, de cabeça rachada por falta de capacete, um equipamento ainda não obrigatório por lei. Aprendi a respeitar mais a vida – minha e dos outros – depois de conhecer famílias desagregadas em função de acidentes estúpidos. Acompanhei de perto a angústia da lenta recuperação de lesões cervicais que transformam qualquer homem equilibrado e maduro em bebês dependentes. Uma experiência tão rica que deveria constar do currículo de vida de todo cidadão, principalmente dos sociopatas e prepotentes que se acham imunes às desgraças. Recebi uma carga gigantesca de conhecimento, até eu quase parar na UTI cardíaca na condição de paciente.

O laboratório ficava no último andar do hospital, logo acima da UTI. No andar inferior ficava a maternidade e eu brincava com meus “colegas” médicos:

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– Esse laboratório é o maior trânsito de almas! Tem alma descendo, tem alma subindo e eu aqui no meio só orientando “você pra direita; você desce; você vai pro inferno!”.

Quando voltava do almoço tinha de passar pela UTI e ás vezes encontrava famílias chorando na escadaria e pensava “putz, tem alma à solta no pedaço”. Tudo bem que era divertido, mas tinha momentos nos quais o laboratório precisava ficar totalmente escuro, daí o nome de “câmara escura”. Noutras vezes eu podia deixar uma lâmpada vermelha acesa, mas por alguns minutos tinha de apagar tudo e ficar naquele breu sem saber o que se passava fora.

Uma tarde passei pela UTI, notei que tinha movimento indicando óbito e me enfiei no laboratório. Liguei o rádio, apaguei as luzes e comecei a abrir uma bobina de filme para revelar. Foi quando pensei estar ouvindo vozes dentro do laboratório. Desliguei o rádio, apurei os ouvidos e ouvi claramente “É, parece que tem mais alguém aqui”.

Quem estava no corredor da UTI não entendeu como uma pessoa pudesse ser capaz de descer os degraus praticamente sem tocá-los. Literalmente larguei o filme, abri a porta e saí correndo do laboratório em direção à capela que ficava no térreo. A primeira freira que me viu levou um choque com o meu desespero, além da aparência absolutamente pálida.

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– Socorro, irmã, tem uma alma solta no meu laboratório!!!

Apesar de todas as tentativas da freira me acalmar só voltei ao laboratório protegido pelo corpo dela e ainda pedi insistentemente

– Aponta o crucifixo pra frente, vai que é o demônio!

Ela passou pela porta do meu CDF e acendeu a luz. Só então percebi que a porta de acesso ao sótão estava aberta. Continuei escondido atrás dela e gritei:

– Quem está aí? Sai desse sótão que não te pertence! Xô, espírito desencarnado!

Ouvimos passos em direção à portinhola e já estava quase fazendo xixi nas calças quando apareceu a cara gorducha do zelador que me esculachou:

– Desencarnado, não, é o encanador! Trouxe o encanador pra ver se esse vazamento na UTI vem do seu laboratório!

Ainda tentei contornar:

– Rá, sabia que eram vocês, hehe, então, dona freira, a senhora pode notar que o laboratório está muito bem arrumado, higienizado e desalmado!

Por garantia passei a levar um terço e pendurar na entrada. Depois de seis meses larguei meu CDF para ser fotógrafo de automobilismo e dar início a uma carreira jornalística tão desalmada quanto meus companheiros de laboratório.

* Se você gostou dessa crônica leia o livro O Mundo É Uma Roda, de Geraldo Tite Simões com 66 crônicas! http://www.motonline.com.br/loja/cam-bone.html

Tite
Geraldo "Tite" Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos BikeMaster e Abtrans.