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Lembro de uma historinha, talvez verdadeira, que certo empresário conversava com um importante governante nacional nos jardins de sua casa sob um belíssimo céu estrelado e apontou para a lua, perguntando “você consegue ver o desenho formado pelas manchas?”

E o governante olhando fixamente para a ponta do dedo do seu colega procurando alguma mancha, talvez na unha, respondeu “aqui no escuro eu não consigo, mas se chegarmos ali mais para a luz, talvez…”

Essa história ilustra um pouco a muitas vezes equivocada visão de “onde está o problema”. Hoje quero conversar com vocês um pouco sobre as minhas recentes experiências em viagens, já que tive nos últimos três meses a oportunidade de estar em Nova York, Tokio, Taipei (Taiwan), Hong Kong, Shenzhen (China), San Franscisco, e mais algumas capitais no Brasil, onde constatei incríveis diferenças na resolução dos problemas de trânsito. Quero falar um pouco sobre Bom Senso, algo que às vezes só um observador externo consegue ver sem as influências e vícios de quem vive a situação diariamente. Uma vista de Shenzhen (China), perto de Hong Kong. Para quem pensa que a China é lugar de trabalho escravo, produtos vagabundos e péssimas condições de vida…

A Imigrantes, em SP, é um dos raros exemplos brasileiros.

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Vamos começar com aquela velha discussão entre as motos, as motonetas e as scooters, que, aliás, foi matéria de uma revista nacional recentemente. Por que na Ásia e na Europa as scooters são tão populares, quase não dando espaço para as tradicionais motos 125cc ou motonetas como a Honda Biz? E porque aqui no Brasil, é justamente ao contrário?

Não sou o dono da verdade, mas como observador externo e desvinculado de qualquer vício emocional, posso enumerar alguns motivos. Lá as ruas são perfeitas, sem buracos e bem sinalizadas. Lá o trânsito, mesmo quando intenso, é bem organizado e pouco perigoso para essas pequenas motos. Lá é comum encontrarmos grandes estacionamentos destinados a motocicletas, com preços diferenciados conforme seu tamanho (algo que me parece bastante óbvio). Lá é possível, conforme o país, ter diferentes cargas tributárias e obrigações legislativas conforme o tipo da moto, facilitando a entrada dos jovens aos modelos mais simples, como as Scooters e seus câmbios automáticos. Na maioria desses países um jovem de 16 anos pode dirigir um scooter, mas para ter uma moto de grande cilindrada é preciso comprovar experiência e realizar provas extremamente difíceis.

Em Taiwan, por exemplo, as Freeways são restritas as motos de 550cc pra cima, o que me parece bastante óbvio também. Só que aqui isso seria impraticável, mas não por causa das motos, e sim das estradas, que são poucas e ruins. Restringir o acesso a certos veículos certamente causaria um dano maior a sociedade do que um benefício coletivo. Aliás vocês sabem a diferença entre uma estrada comum (Road), uma Freeway e uma Highway (também chamada de Autoban, na Alemanha)?

De forma bem simples, uma estrada comum é quase urbana, de baixa velocidade, e cruza vilarejos com comércio, serviços e tudo mais. Conceitualmente essas estradas não têm pedágio e são livres para qualquer veículo automotor, inclusive caminhões. As Freeways, como o próprio nome diz, são “free”, ou seja, grátis, também sem pedágio. São vias públicas custeadas com seu imposto e abertas a todos os veículos automotores, inclusive veículos de carga, mas com algumas restrições conforme a região ou velocidade média planejada. Geralmente possuem faixas para diferentes velocidades com as mais lentas localizadas à direita (ou à esquerda, se for mão inglesa como em Hong Kong). As freeways foram criadas para dar maior vazão ao tráfego, impraticável se só houvesse as pequenas estradas, e fazem parte da infra-estrutura pública para o escoamento da produção e do direito de ir e vir dos cidadãos. O imposto pago pelos usuários, através da compra de carros, motos, autopeças, e das taxas de licenciamento anual são a base para o custeio dessas maravilhas.

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As Highways são vias ALTERNATIVAS às Freeways, muitas vezes através da iniciativa privadas, e são pagas (pedágios). Na grande maioria dos casos são de altíssima velocidade, restritas apenas a veículos de passeio (nada de caminhões ou veículos de cargas perigosas) capazes de manter médias de velocidade dentro das especificações da rodovia. Por essa descrição, as scooters e motos pequenas poderiam trafegar apenas nas rodovias de baixa velocidade, mas isso em hipótese alguma restringiria a capacidade de locomoção do cidadão já que as freeways e highways seriam vias complementares, portanto é apenas uma adequação ao veículo. É assim em quase todos os países civilizados, mas não aqui…

Uma típica freeway americana.

Aqui no Brasil nossos legisladores decidiram que todos podem andar em qualquer estrada ou rua, como aquelas famosas carretas de cargas pesadas e/ou perigosas que trafegam pelas ruas de São Paulo, ou como as nossas 125cc que tem autorização para trafegar em qualquer estrada, mesmo aquelas que requerem médias de velocidades superiores à capacidade do veículo. Certa vez parei em um sinal com minha imensa Harley Davidson Electra Glide ao lado de uma menina com uma pequena scooter, e pensei: “incrível, tanto ela quanto eu pagamos o mesmo valor de seguro obrigatório, a mesma tarifa percentual de IPVA, podemos trafegar pelas mesmas vias, e passamos pela mesmo processo de habilitação. Portanto, pela legislação brasileira, somos iguais…”.

Mas não somos… é obvio que não somos…

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Por causa dessa aparente democracia, quando um legislador decide “botar o dedo no problema”, ele o faz de forma estúpida, olhando apenas parte do problema. Por exemplo, sou obrigado a andar lentamente à direita pela Linha Vermelha no Rio de Janeiro, nossa conhecida “faixa de gaza” devido aos tiroteios comuns na região, porque algum imbecil decidiu que “motos” (e não importa qual) são lentas e devem ficar à direita onde são destinados os veículos mais lentos. E lá vão as Hondas Biz, Pop, as CGs, as Harleys, as Suzuki Hayabusa, as Hornets, etc, todos em fila indiana desviando dos obstáculos e das balas, quando podem. Pra quem não conhece nossa “faixa de gaza”, ou linha vermelha (de sangue), seu asfalto está semi destruído, todas as entradas e saídas são pela direita onde, coitados, os motociclistas são obrigados a trafegar, dividindo seu espaço com os animais que pastam junto ao gramado, ou com os carros acidentados (já que não há acostamento), e ainda sofrem com o desnível de solo a cada ponte, já que boa parte do aterro já cedeu. Por mais de uma vez cheguei a tirar as duas rodas da minha Harley do chão, em uma ponte que parece estar quase um metro acima da pista. Radares escondidos e não sinalizados multam aqueles que ultrapassam os 90 km/h, mas é incrível a quantidade de carros que trafegam livremente a mais de 120 km/h sem punição. Placas “frias”, talvez?

No Brasil toda rodovia é conceitualmente igual, com exceção de algumas poucas no Estado de São Paulo que se parecem com as freeways internacionais. O pedágio é uma praga nacional já que não há no Brasil o conceito de “via alternativa” pela qual se paga para obter um beneficio. Aqui se paga pelo simples direito a trafegar, mesmo que a nossa constituição nos garanta o direito de ir e vir. Não vou nem falar dos quebra molas, outra praga em nossas estradas. Já presenciei prefeito inaugurando quebra molas em frente a escolas com toda pompa, mas que diabos a escola está fazendo ao lado da estrada? É por acaso uma vitrine política?

Uma “criança” de 18 anos recém habilitada pode, se quiser, comprar uma Honda Gold Wind como primeira moto e trafegar livremente por qualquer rua ou rodovia, mas aos 17 anos e meio ele NÃO PODE ter uma scooter… Aliás, seria de pouca utilidade visto que as maiorias dos destinos dos cidadãos motorizados não possuem estacionamentos para motos. Já fui multado com uma Sahara 350cc por ter parado em uma vaga de carro, mesmo eu tendo pago ao flanelinha a “taxa” do estacionamento. Como o transporte público é precário na maioria das cidades, a solução é ir de carro, mas aí o problema é o engarrafamento…

Vista de um estacionamento de motos em Taipei, ao lado de um importante Shopping Center.

Falando transporte público, vocês conhecem algum aeroporto nacional que seja conectado ao centro urbano através de metrô, trem ou linhas de ônibus especiais, com ar condicionado e local para bagagens? Pois no exterior essa é a regra. Só se recorre ao táxi em última necessidade. Em Hong Kong o novo aeroporto foi construído sob uma ilha artificial, distante da cidade, e vamos para lá através de um rapidíssimo metrô de alta velocidade, com estações nas principais áreas da cidade. Metrô esse que tem espaço para as bagagens, ar condicionado, informações sobre os vôos e terminais de cada companhia, etc. Bom senso é algo simples… Aqui não temos nem vans para os aeroportos, uma ida e volta de táxi do centro de Salvador até o aeroporto custa praticamente à metade da passagem aérea. Já pararam para pensar que todos os passageiros de avião no Brasil precisam ir ao aeroporto usando meio de transporte individual?

Curiosamente, nós somos o país com a maior taxa de mortalidade entre os motoristas. Morrem mais nas estradas do Brasil a cada ano mais do que morreram soldados americanos no Vietnam. Nós perdemos um “11 de setembro” a cada feriado prolongado. E o governo culpa a nós, afirmando que somos imprudentes. Dizem isso como se as rodovias fossem espetaculares, verdadeiros tapetes de asfalto bem sinalizados. O fato é que aqui no Brasil segurança é luxo, já pensou nisso?

Um carro popular de 30 mil reais aqui no Brasil não tem ABS, nem airbags e muito menos controle de tração, mas incluem em seu preço cerca de 12 mil reais em impostos, fora o custo do licenciamento anual. Impostos esses que deveriam ser usados na melhoria das estradas e no bom serviço de saúde de emergência, como os regastes em estradas (aliás, aqui isso só existe em estradas com pedágios…). Um kit de ABS, airbags e controle de tração custa, sem impostos, menos de 3 mil reais, e são muito eficazes na redução da mortalidade nos acidentes. Será que o governo não poderia exigir esses itens como obrigatórios e abrir mão de parte dos impostos, de forma que o custo final do veículo permanecesse o mesmo? Não seria lógico? Essa medida não traria apenas beneficio social, mas sobretudo uma imensa economia para o governo, que gastaria menos com o atendimento dos acidentados e não mataria sua galinha de ovos de ouro que é o cidadão contribuinte que comprou o tal carro logo no início de sua vida economicamente ativa. Contribuinte morto não paga imposto… Será que algum legislador já fez a conta de quanto um jovem morto nas estradas deixará de pagar em impostos ao longo da vida que ele foi privado de ter?

Sinceramente, eu acho que essas decisões ainda vão levar muito tempo para serem tomadas. Tornar o cinto de segurança obrigatório nos automóveis brasileiros levou quase 80 anos desde a estréia do carro em nossas ruas. Vidros laminados e capacetes para motociclistas vieram um pouco depois, mas demoraram a se tornar populares. Acho que isso é fruto da nossa pouca experiência democrática, afinal em mais de 100 anos de república nós só tivemos quatro presidentes eleitos pelo povo que conseguiram terminar seus mandatos. Acho que é por isso que os cidadãos brasileiros estão tão acostumados a pagar por nada sem reclamar, e a sofrer quietinhos em seu canto, como se fossem obrigados a se calar.

Talvez lá perto do ano de 2050, quando meus netos estiverem comprando seus primeiros veículos, tenhamos subsídios para itens de segurança como ABS ou airbags, rodovias alternativas pagas com padrões variados de uso e conforto para aqueles que não quiserem usar as vias gratuitas cheia de caminhões. Talvez os aeroportos já sejam servidos por transporte público de qualidade sem a necessidade de usar táxis, e com muita sorte talvez tenhamos legislações especificas para motocicletas de porte diferentes, facilitando o uso e a entrada dos jovens aos modelos mais simples. Poderíamos ter isso já, mas não merecemos, não é mesmo?

Até lá, vamos proibir as motos de andar com garupas, exigir selinho no capacete, placa gravada no casaco e outras besteiras que só quem olha para a ponta do dedo, e não para a lua, é capaz de conceber.

p_c