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A represa de Guarapiranga, em São Paulo, abriga os principais clubes de iatismo da capital e funciona como berço na formação de alguns dos melhores esportistas na vela. Por isso me senti um verdadeiro peixe fora d’água quando adquiri um veleiro monocasco Laser de competição e tornei-me sócio do Clube Municipal de Vela, um dos mais rigorosos e exigentes da represa.

Assim que cheguei ao clube já enfrentei a primeira dificuldade: montar o barco. Aquilo que parecia simples para quem vê de longe, sentado numa mesa, com um copo de caipirinha na mão, se revelou um enigma indecifrável na prática. Fiquei ali olhando aquele monte de cordas ops, desculpem, cabos, algumas peças bonitinhas de aço inox e uma carretilha muito genial, que permitia o cabo da escota passar em um só sentido. Qual sentido eu só viria a descobrir algumas velejadas mais tarde.

Discretamente, sem ninguém perceber, copiei a montagem do barco de duas meninas e fui fazendo mais ou menos igual. Na primeira vez esqueci as talas. Na segunda vez lembrei das talas, mas esqueci uma presilha da cana do leme. Na terceira vez lembrei de quase tudo, menos de um cabinho ridículo que impedia a bolina de mergulhar rumo às profundezas, caso o barco virasse. O que aconteceria em seguida!

Em menos de três meses já montava e desmontava o Laser com a maior habilidade do mundo, quando deram a notícia em tom de ameaça: para continuar no clube teria de fazer pelo menos 70% das regatas do calendário, senão rua! Depois de três anos como piloto de kart eu estava justamente buscando fugir das competições. Não queria saber daquele stress de treinos, regulagem, limites, estava farto de competir. O comunicado era assinado por um almirante chamado Ryo Harada, por quem passei a nutrir um ódio visceral.

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Sem a menor experiência em regatas comecei a treinar feito um atleta olímpico. Até durante a semana, quando conseguia escapar do trabalho e aproveitava algumas condições inéditas de vento. E foi assim que, numa certa quarta-feira de inverno, São Paulo amanheceu sob uma ventania de arremessar cachorro. Pensei “oba, nunca peguei um ventão desses, é hora de treinar vento forte”. Convoquei meu irmão mais velho, proeiro de emergência, e fomos à represa vazia e tempestuosa.

No mural do clube tinha uma tabela de equivalência de ventos, chamada Escala Beaufort. Uma coisa tipo assim, você observa a natureza, repara o movimento das folhas, das árvores, da relva, da água e deduz qual a velocidade do vento. Por exemplo: folhas balançando é igual a vento “fraco” entre 7 a 10 nós (12 a 18 km/h); galho balançando, vento “moderado” entre 11 e 16 nós (19 a 26 km/h); árvore toda balançando, vento “forte” entre 28 e 33 nós (45 a 54 km/h); árvore arremessada longe, “muito duro” entre 48 e 55 nós (78 e 90 km/h). Nenhuma dessas classificações se enquadrava naquela condição, que seria algo como “vacas voando para cima de árvores seculares”. Lembro exatamente das palavras do meu irmão: “Você não acha que esse vento está forte demais? Olha a quantidade de coisas voando”. De fato, era saco plástico, misturado com papel, galhos de árvore, tudo embolado e se espalhando. Pensei até ter visto um vira-lata passando por cima da minha cabeça!

Para completar o quadro sinistro, São Paulo enfrentava uma seca brava em 1983, não chovia havia mais de dois meses e a represa estava tão vazia que era preciso colocar o casco do Laser na capota do carro e descer centenas de metros até chegar à água. Tínhamos ainda outro problema: apenas um salva-vidas, com capacidade até 70 kg e meu irmão além de (bem) mais pesado nadava como um martelo sem cabo. Num gesto de fraternidade, passei meu colete pra ele e fui sem nada.

A tensão de entrar naquela água fazia minha adrenalina sair pelo nariz, mas não queria voltar atrás, afinal eram dois pós-adolescentes faltando ao trabalho só pra treinar para as tais regatas do almirante Harada! Não podia mais desistir. Tremendo de nervoso, frio e desespero entramos na água.

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Assim que coloquei o barco de través saímos que nem uma lancha off-shore, os dois pendurados no trapézio, furando os “carneirinhos” e planando várias vezes. Uma emoção incapaz de ser descrita! O Laser é muito rápido e o leme ficava cada vez mais pesado. Tão pesado que a cana do leme não agüentou e quebrou! Perdi o controle, o barco virou e catapultou meu irmão pra baixo da vela. Quando percebi o Laser estava com o casco de lado, meu irmão afundando que nem uma bigorna e o vento levando o barco pra longe a uma velocidade inalcançável. A desgraça tinha opção: salvar o barco ou o irmão?

Até que senti algo nos meus pés, cutuquei e percebi que estávamos em uma parte rasa, com pouco mais de meio metro de profundidade! Levantei e fiquei olhando meu irmão se debatendo que nem um siri na lata até ele também perceber que bastava ficar em pé. Saí correndo (mesmo!) atrás do barco e consegui pegá-lo. Tentei desvirar e o resultado foi mais desastroso ainda, porque o barco virou completamente, o mastro bateu no fundo, entortou e rasgou a vela.

Não faltava acontecer mais nada de errado. Quer dizer, até descobrir que o remo – mal amarrado, como sempre – tinha ido embora. Endireitei o casco e sentamos no cockpit já imaginando as manchetes dos jornais na editoria “cidades” dando conta do desaparecimento de dois velejadores na Guarapiranga. Pior ainda: imaginei chegando em casa e dando a notícia para minha família que o filho mais velho tinha passado dessa para outra dimensão! Começava a escurecer quando ouvi barulho de motor de lancha. Botei meu irmão para soprar feito louco o apito do salva-vidas, mas nem precisava, porque a lancha estava vindo justamente em nossa direção pra uma operação de resgate, a pedido da diretoria do clube, que observava tudo de longe.

Quando cheguei rebocado ao clube levei uma tremenda bronca e minha carreira de iatista sofreu um grande golpe. No final do ano já tinha desistido das regatas e mudei para uma marina no litoral, onde apenas me divertia em passeios com vento beeeem fraco.

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Desse ridículo naufrágio a meio metro de profundidade aprendi praticamente todas as lições náuticas que carreguei para toda a vida. A mais importante delas, e que serve para várias situações, é nunca querer ir além do que sua experiência permite. Nunca mais entrei em uma embarcação sem colete salva-vidas para todo mundo. E para provar que esse mundo é mesmo uma casca de noz, hoje o Ryo Harada, quem diria é um grande amigo e meu sócio

Tite
Geraldo "Tite" Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos BikeMaster e Abtrans.