Publicidade
Nas cidades interioranas, há tempos que os animais vem sendo substituido pelas motos - Foto: Theo Ribeiro

Nas cidades interioranas, há tempos que os animais vem sendo substituido pelas motos - Foto: Theo Ribeiro

Tem uma história na web que conta a trajetória do Severino, um senhor nordestino, analfabeto, cujo ganha-pão era afiar facas e consertar panelas em domícílio, com seu equipamento, um rebolo de pedra, instalado na sela de um jegue. Indo de casa em casa, Severino garantia o seu sustento.

No final do dia de trabalho, geralmente causticante pelo terrível sol nordestino, Severino passava em um boteco no caminho de casa e tomava as suas pinguinhas. Depois de várias, já alterado pela bebida, Severino montava em seu jegue e este já sabendo o caminho de casa, conduzia Severino com segurança até sua morada.

Com a popularização e a facilidade de aquisição das motocicletas, Severino também aderiu à moda e comprou a sua motoca; instalou o rebolo no bagageiro e continuou prestando o mesmo serviço à população da sua região.

Publicidade

Acontece que Severino não perdeu o hábito de passar no boteco para as pinguinhas diárias no final da tarde, e não tomou consciência que diferente do jegue, a moto não o levaria para casa sozinha.

A história do Severino reflete exatamente o que vem acontecendo nas regiões norte e nordeste brasileiro, com a substituição contínua dos animais de transporte e tração pelas motocicletas, entretanto, sem que a população receba preparo para fazer frente a essa mudança radical nos hábitos regionais.

O gráfico abaixo registra a distribuição geográfica de motocicletas em nosso país, dados de 2011 expedidos pelo Denatran:

As regiões norte e nordeste detém 32% da frota em duas rodas a motor

As regiões norte e nordeste detém 32% da frota em duas rodas a motor

Publicidade

O que esta acontecendo é que a população interiorana dessas regiões vem comprando motocicletas em grande escala – em sua maioria, as de 125cc – e as usando no lugar dos jegues, sem o menor preparo ou estarem habilitados, já que grande número desses motociclistas não sabe ler e escrever, exigencia do Código de Trânsito Brasileiro em seu Capítulo 14, Artigo 140, Inciso II para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação.

Pelas estatísticas da Abraciclo, nestas regiões o número de motocicletas é muito superior ao número de motociclistas habilitados na categoria A, o que evidencia a afirmação citada no parágrafo anterior (vide gráfico).

Os dados apontados nesse gráfico são alarmantes, veja o caso do estado do Maranhão, onde o número de motocicletas supera em 222% o número de habilitados na categoria A. Na sequência vem os estados do Piauí com 178% e Ceará com 157%.

Para complicar ainda mais a situação, há uma total indiferença dos órgãos que deveriam coibir a utilização de motocicletas por cidadãos que não estejam habilidados e preparados. O que se vê nas cidades do interior dos estados em geral, não só os do norte e nordeste, é o total desinteresse das autoridades de trânsito em coibir o uso de motocicletas sem as condições mínimas de circulação e a sua utilização por pessoas não habilitadas. Comum ver em documentários da TV sobre o tema, motocicletas sendo conduzidas por pessoas sem capacete, utilizando chinelos de dedo, transportando menores de 7 anos e ausência total de equipamentos de segurança.

Publicidade

O transporte de crianças menores de 7 anos tem sido uma catástrofe em alguns estados nordestinos. Segundo dados fornecidos pelo site da ABETRAN – Associação Brasileira de Educação de Trânsito, 25% dos 60 leitos reservados para crianças no maior hospital de emergência do nordeste estão ocupados por vítimas de acidentes de motos. O Código de Trânsito diz que conduzir motocicleta, motoneta ou ciclomotor transportando criança menor de sete anos ou que não possa cuidar da própria segurança é infração gravíssima. A multa é de R$191,00 mais sete pontos na carteira de habilitação. Mas de que vale a lei se não há fiscalização e nem punição para os infratores?

É crescente o número de acidentes de moto envolvendo crianças - Foto: Abetran

É crescente o número de acidentes de moto envolvendo crianças - Foto: Abetran

Adultos conduzem os menores sem capacete, com três (ou mais) pessoas em uma moto, com crianças espremidas no meio ou sozinhas na garupa. Vitória, dois anos, é uma das vítimas da imprudência. Ela estava na moto com o pai e uma tia, quando eles bateram em outra moto. A menina teve uma fratura no fêmur e está há mais de um mês no Hospital da Restauração.

O tempo médio de permanência dos pacientes na Restauração é de 7 a 11 dias. Crianças dificilmente ficam internadas menos de 45 dias e, muitas vezes, permanecem imobilizadas, entre uma cirurgia e outra.

Rafael, outro menor acidentado, já passou por quatro cirurgias. Está vivendo no Hospital há sete meses. Fraturou as duas pernas, o fêmur, um braço e a bacia e não consegue andar. Estava na moto com o irmão e uma menina de 12 anos. Todos sem capacete. Os outros dois morreram.

Segundo dados do Ministério da Saúde, quase metade dos gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com vítimas de acidentes de trânsito no Brasil foi destinada ao atendimento de motociclistas em 2011. De acordo com levantamento do Ministério da Saúde, foram investidos 48,07% de aproximadamente R$ 200,3 milhões. Um dos motivos é o aumento de 95,32% nas internações de motociclistas acidentados entre 2008 e 2011.

No mesmo período, os gastos no atendimento a usuários de motocicletas cresceram 113% em todo o País. A região Norte é a que registra o maior percentual de gastos: 68,65% dos cerca de R$ 7,6 milhões investidos no ano com pacientes que sofreram acidentes foram destinados aos motociclistas. No Pará, eles foram responsáveis por 83,77% dos gastos de R$ 3,4 milhões em 2011. O Pará é um Estado ocupado por motos onde o número de acidentes fatais, segundo o Departamento de Trânsito (Detran), cresce a taxas alarmantes de quase 20% ao ano. O número de vítimas, segundo levantamento do departamento, pulou de 378 em 2008 para quase 770 em 2011 e deve chegar a, aproximadamente, 924 até o final deste ano,  obrigando o Ministério da Saúde, através do Sistema Único de Saúde (SUS), a aumentar em quase 113% o repasse de verbas destinadas ao tratamento de acidentados no Brasil: de R$ 45 milhões, em 2008, para R$ 96 milhões no último ano. O secretário de Saúde Pública do Estado, Hélio Franco, dá o parecer sobre o assunto: “É uma epidemia”.

Ano passado, a Sespa (Secretaria Estadual de Saúde Pública do Pará) investiu 20 milhões no tratamento de vítimas de acidentes envolvendo motocicletas. De acordo com Hélio Franco, o Estado gasta por mês R$ 500 mil apenas no transporte de pacientes com traumatismo, a maioria proveniente de acidentes com motos. Muitos acidentados ganham direito à aposentadoria por invalidez, de saúde e familiar.

Entre os Estados, esse percentual só não é maior do que o do Piauí, onde 84,26% dos cerca de R$ 3 milhões destinados a vítimas do trânsito no Estado foram usados para atender pessoas acidentadas que estavam em motos. O Nordeste também tem o estado que teve o maior aumento nos gastos nos últimos quatro anos. Em Pernambuco, o custo subiu 1.286% de 2008 a 2011, passando de R$ 184 mil para R$ 2,5 milhões.

O excesso de velocidade, o consumo de bebida alcoólica antes de dirigir e a imprudência são apontados pelo ministério como fatores que têm contribuído para o aumento de acidentes envolvendo motociclistas. O incremento na frota de veículos também é responsável pelo crescimento das estatísticas nada animadoras.

O que está acontecendo é uma verdadeira carnificina, com pessoas morrendo diariamente apenas por pilotarem sem estar preparadas. O que causa estranheza é a indiferença das autoridades pois essas estatísticas assustadoras já deveriam ter desencadeado medidas para conter essa escalada de mortes entre motociclistas.

Onde estão as autoridades de trânsito das cidades do interior? E a vontade política dos prefeitos e governadores? O que estão fazendo as polícias rodoviárias Estaduais e Federal? Cadê os representantes dos Ministérios Públicos dos Estados que não exigem atuação mais presente dos prefeitos, Detrans, Contran e Denatran? Quais ações estão sendo executadas pela Abraciclo? Por um número insignificantemente menor de mortes nas favelas do Rio, houve a mobilização da Guarda Nacional. Por que não acionar esse mesmo contingente de policiais para intervir nas cidades onde há clara omissão das autoridades de trãnsito e fazer com que seus prefeitos sejam punidos pela omissão?

Walter Kauffmann Neto

Walter Kauffmann Neto

No II Workshop Abraciclo realizado em 2011 em São Paulo, Walter Kauffman Neto, engenheiro, consultor e perito especialista em acidentes de trânsito, disse que a educação, fiscalização e punição são os fundamentos do caminho a ser seguido para solucionar os problemas de acidentes no trânsito em nosso país. Como aplicar esses fundamentos sem ter polícias fiscalizadoras de trânsito nas pequenas cidades? Essa é a questão. (clique aqui para rever a matéria)

Diante dessa abordagem, conclui-se que o problema é sério,  real e carece de ações concretas imediatas, recorrendo-se à vontade política e policiamento ostensivo. Basta as autoridades de trânsito cumprirem suas obrigações constitucionais (municipais, estaduais e federal) que o número de mortes entre motociclistas tende a cair a níveis aceitáveis pela Organização Mundial de Saúde – OMS.

E respondendo à pergunta no título, a resposta é NÃO, o jegue não tem culpa nenhuma, pelo contrário, tornou-se também vítima por estar obsoleto. E está sendo dizimado.

 

Mário Sérgio Figueredo
Motociclista apaixonado por motos há 42 anos, começou a escrever sobre motos como hobby em um blog para tentar transmitir à nova geração a experiência acumulada durante esses tantos anos. Sua primeira moto foi a primeira fabricada no Brasil, a Yamaha RD 50.