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“E o sertão é um paraíso… Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam em varas, pelas trigueiras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fímbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu trote, brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores, e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados…”. Mancdacarú

Flávio Iguana

Jean Azevedo

Marimbondo caboclo (Foto: Sônia Furtado)

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Kleber entrevista Donizete

Ricardo Medeiros

Roadbook de tupperware

Robert Nahas

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Sadi e Diego: churrasco

As belezas da caatinga e semi-árido reveladas por Euclides da Cunha no livro “Os Sertões” foram vistas de perto por quem participou do 9° Rali RN 1500, disputado em três dias, no mês de setembro, no Rio Grande do Norte. Foram mais de 1.000 km de trilhas e estradas, com três especiais de velocidade extremamente variadas: do litoral potiguar à aridez do Seridó, passando por salinas, campos de petróleo e riquezas naturais que normalmente só ouvimos falar nas aulas de Geografia. Por exemplo, quando foi a última vez que você atravessou um rio intermitente?

Participar de ralis, seja como piloto ou jornalista é a uma forma divertida e emocionante de conhecer de perto o Brasil que o Brasil não conhece. Foi graças aos enduros e ralis que viajei o Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste e tive contato com tantas culturas e diversidade biológica que nenhuma escola seria capaz de me ensinar.

Havia já mais de quatro anos que não tinha a chance de acompanhar de perto um rali e,mais uma vez graças ao meu amigo e compadre Kleber Tinoco segui de perto o RN 1500, tendo ao meu lado a alegre companhia do Edu Minhoca, piloto de teste da revista Moto, Donizete Castilho, fotógrafo e Arilo Alencar, piloto de carro jornalista da revista 4×4. A convite da organização, Minhoca entrou na prova como piloto inscrito o que foi ainda mais divertido tanto pelo esquema mambembe da “equipe” quanto pelo relato das condições técnicas do rali. Quando vimos a XR 250 Tornado “preparada” para a prova foi um choque: a suspensão traseira estava sem ação, o pneu dianteiro gasto, não tinha prancheta nem roadbook. Bati no ombro do Minhoca (minhoca tem ombro?) e falei: “Acho que você está f***!”.

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No sala de imprensa a Pirelli – uma das patrocinadoras da prova – tinha montado um estande com vários pneus, entre eles um MT 32 dianteiro que sorrateiramente sumiu da prateleira e foi parar na roda de uma certa Tornado. Faltava resolver o problema do roadbook, aquela engenhoca com dois eixos na qual o piloto coloca a planilha com roteiro e vai só apertando uns botõezinhos para correr as páginas para cima ou para baixo. Na impossibilidade de conseguir um roadbook na véspera da vistoria e solução veio da cozinha. O melhor mais engraçado preparador de motos de rali que conheço, o Geraldo (de Campos do Jordão) deu a solução: tapoé!

– Hein? Perguntamos, é linguagem tupi?

Lá foi Minhoca comprar um Tupperware desses de guardar sopa na geladeira, e duas canetas esferográficas e “fabricou” o mais tosco roadbook que a comunidade de rali já viu na vida. E pior: passou na vistoria!

Entre os pilotos “de verdade”, Jean Azevedo, Juca Bala, Flavio Iguana Carvalho, Dimas Mattos, Robert Nahas foram alguns dos principais inscritos na prova – coincidentemente todos de São Paulo.

A peleja dos jotas entre Jean Azevedo e Juca Bala começou no prólogo disputado na pista de motocross da BR-Moto de Natal. Juca (Yamaha WR 450) fez o segundo melhor tempo, atrás do surpreendente quadriciclo do Robert Nahas (Honda 450). Jean Azevedo (KTM 540), fez o quarto tempo sem muita preocupação, porque o objetivo maior era treinar para o Dakar. Se Jean aos poucos vence sua timidez e já conversa mais com os jornalistas, Robert se revelou um cara divertido, boa companhia e que sabe curtir a vida em cima de um quadriciclo. Por ser um dos primeiros a assimilar – e bem – as técnicas de pilotagem sobre quadro rodas e um guidão, tem faturado praticamente todos os ralis em que participa e até aporrinhado a vida dos pilotos de motos a ponto de Jean Azevedo já ter afirmado uma vez que seu principal adversário em uma prova era um quadriciclo!

Outro que se diverte nos ralis é o impagável Flavio de Carvalho, nome de batismo do Iguana. Vale a pena contar a origem do apelido deste paulistano figuraça. Quanto era um pentelhinho adolescente o Flavio colecionava bichinhos insólitos como cobras, iguanídeos de vários tipos e outros seres rastejantes ou peçonhentos. Certa vez uma das suas cobras escapou do terráreo e se enfiou atrás de um armário. Nunca mais a empregada entrou naquele quarto. Em outra ocasião, durante o transporte, uma das cobras fugiu e se embrenhou por trás do painel da picape que deixou no lava rápido. Mais tarde recebeu um telefonema desesperado do lavador:

– O sr andou com esse carro pelo Pantanal? – Não, por quê? – Então corre porque tem uma sucuri debaixo do banco!

Voltando ao Rali, o Minhoca fez o 20º tempo geral no prólogo e 5º na categoria Nacional. A primeira especial já começou interessante. A largada foi na praia de São Miguel do Gostoso, com chegada em Macau, cidade conhecida pela extração de sal e gás natural. Nessa especial os pilotos enfrentaram mais de 60 km de areia de praia, à beira mar, e tiveram a chance de conhecer um detalhe raro da natureza, quando a vegetação da caatinga encontra o mar. Mesmo se tratando de uma especial de alta velocidade, Juca Bala com a 450 foi o mais rápido, 16 segundos à frente de Jean Azevedo. De acordo com Jean, a sua KTM chegou a 170 km/h na areia da praia.

Nesta primeira especial fui no carro de imprensa acompanhado de Sadi e Diego, dois boas-vidas que tinham um carregamento muito especial: cerveja e churrasco! Êita vidão! Só esqueceram o carvão! Montamos acampamento em um barraco abandonado ao lado de uma fazenda de camarão. Pensei que encontraria um vaqueiro a cavalo tangendo camarões de um lado pra outro, mas nada, só tanques! Por isso lá é a terra do camarão. Aliás “potiguar” na língua de índio significa comedor de camarão! Já “ceciguar” é comedor de… deixa pra lá!

Os 40 pilotos de moto e 11 de carro foram recebidos em Macau no meio da Festa do Sal e os organizadores aproveitaram para fazer a premiação parcial em meio ao forró e danças típicas. Não dá pra levar a sério uma região que tem como principal banda de forró a “Cabaço Molhado”! Depois eu é que sou o palhaço! A festa invadiu a madrugada com um festival de milhares de decibéis a céu aberto, para desespero de todos que estariam prontos às seis da madrugada para a segunda etapa.

Nessa primeira especial meu colega de imprensa, Minhocuçu, foi muito bem, terminando em terceiro na categoria, mochilando alguns pilotos e usando o tosquíssimo roadbook de tapoé. Se ele ganhasse na nacional já estávamos planejando uma mega festa regada a muito camarão: a potiparty!

Seridó sem dó

O segundo dia de competição prometia uma pauleira pra ninguém reclamar da moleza da primeira etapa. A especial de 82 quilômetros atravessou o sertão do Seridó, passando por uma paisagem rica em biodiversidade, mas caracterizada pelo solo rochoso. Quem estava correndo com câmaras tipo mousse (espuma de borracha) não teve o que temer, mas quem largou com câmaras de ar convencional acabou fazendo serviço de borracheiro no meio da trilha.

A primeira baixa importante foi de Juca Bala, que teve o câmbio de sua Yamaha quebrado durante o deslocamento. Ele nem sequer largou, mas continuou acompanhando a prova, dentro do espírito de todo piloto de rali. “Pior é abandonar justamente uma etapa que minha moto de 450cc poderia me dar alguma vantagem”, lamentou o piloto. Por outro lado, Jean também estava frustrado com a saída de Juca, “com ele na briga sou obrigado a forçar mais o ritmo”, justificou. Dimas Mattos

Se quiser saber como é o Seridó basta ficar largado no meio dessa aridez, com uma câmara fotográfica na mão e uma garrafinha de água mineral. Eu tinha deixado de São Paulo sob uma frente fria com temperatura de 6ºC e três dias depois estava no sertão do Seridó, a mais ou menos 40ºC tentando achar uma sombra. Encontrei uma linda e secular aroeira, na medida para estender minha rede e deitar à sombra, na espera das motos. Nem tive tempo de deitar e travei contato com os pouco amigáveis marimbondos caboclos que me atacaram e fiquei com a cabeça cheia de calombos, além da dor de cabeça terrível.

De fato, a especial foi travada, atravessando muitos leitos secos dos tais rios intermitentes, que só existem na época das chuvas. Quem pensava que Jean Azevedo dominaria a especial se surpreendeu ao ler o nome de Flavio Iguana (KTM) como vencedor, com 20 segundos de vantagem. “He he, o Jean esqueceu que sertão é terra de lagartos!!!”, brincou Flavio com o seu apelido “Iguana”. A felicidade do piloto-lagarto era tanta que nem se importou com um tombo que lhe rendeu alguns ralados. Minhoca passou por mim quando estava em segundo lugar e tinha tudo para vencer a especial quando … furou o pneu traseiro! E ele não tinha nem sequer um alicate de cutícula! Dessa forma o invertebrado anelídeo teve de abandonar a prova e uma vitória certa para integrar a nossa comitiva de jornalistas, para nosso completo desespero.

À noite em Currais Novos (segundo os moradores locais a única cidade do Brasil que começa por “cu” e termina por “ovos”), tivemos a chance de presenciar um dos grandes momentos de emoção extra-rali. Por iniciativa das prefeituras e de patrocinadores, algumas cidades promovem um ciclo de cinema ao ar livre. Eu já tinha visto isso uma vez na TV, mas foi a primeira vez que vivenciei a experiência. Foi montada uma tela gigante em uma das praças, colocadas cadeiras de plástico e a população pode assistir cinema a céu aberto. Confesso que esse meu coração véio e empedernido amoleceu diante dos olhos tão ingênuos, alguns que pela primeira vez tinham a experiência de saber como é cinema. Para completar, o filme Lisbela e o Prisioneiro serviu como uma benção. Lamento não ter anotado o nome dos patrocinadores que tiveram essa iniciativa, mas merecem todo respeito e admiração por este trabalho humanitário, rico e grandioso. Falando em humanitário, o RN 1500 também teve seu papel de bom-mocismo e fez uma campanha para arrecadar livros e distribuir para as bibliotecas das cidades por onde passou. Esse é um conceito iniciado pelo memorável Thierry Sabine, o falecido criador do rali Paris-Dakar, que na esteira do maior rali do mundo sempre deixava à população carente algo além da lembrança de motos pilotadas por pessoas coloridas. Tomara que todos os organizadores sigam este nobre exemplo. Minhoca

No terceiro e último dia de prova o criador e levantador do roteiro, Kleber Tinoco, fez pilotos e jornalistas conhecerem a serra potiguar. “É pra vocês não pensaram que aqui é só aridez”, explicou! A largada foi na bela e histórica cidade de Currais Novos e passou por Cerro Corá, Ceará Mirim, encerrando em Natal. Neste trajeto, com trechos de alta velocidade, Jean Azevedo dominou e sacramentou sua vitória na categoria Motos. A categoria mais numerosa e divertida foi a Brasil, na qual correm motos nacionais! O vencedor foi o constante Carlos Magno, com o divertido e folclórico Nelson Prezado em segundo. A categoria Production foi vendida pelo lagartixo Flávio Iguana e na Marathon quem faturou foi Ricardo Medeiros. O paulista Robert Nahas foi o vencedor entre os quadricilos e a dupla Riamburgo Ximenes e Lorival Roldan, também de malas prontas pro Dakar 2007, venceu na categoria Carros.

Se depender da avaliação dos representantes da CBM e dos pilotos, o RN 1500 tem tudo para voltar a fazer parte do calendário nacional de rali sem interrupções. E podem aguardar a volta da dupla Tite-Minhoca em 2007, quem sabe com os dois pilotando, mas sem precisar de um estoque de tupperware. Se depender de minha experiência espero que todos os ralis sigam o exemplo do RN 1500. E se depender do Kleber Tinoco cada pessoa ligada ao motociclismo fora-de-estrada terá a chance de ver de perto as belezas e histórias da caatinga tão docemente reveladas por Euclides da Cunha.

Resultados (para saber mais visite www.rn1500.com.br )

Super Production 1- Jean Azevedo 2- Dimas Mattos 3- Antônio Carlos Quadriciclos 1 – Robert Naji 2 – Swedoni Melo 3 – Tom Rosa Production 1 – Flávio Augusto 2 – Rodolfo Mattheis 3 – Sílvio Barros

Marathon 1 – Ricardo Medeiros 2 – Jean Pierre 3 – Wellington Rezende Brasil 1 – Carlos Magno 2 – Nelson Prezado 3 – Joca Concentino

Tite
Geraldo "Tite" Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos BikeMaster e Abtrans.