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A nossa amizade era do tipo de passa cigarro, vem açúcar, passa café, vem cerveja, passa chave de fenda, vem papel essas coisas que não existem mais. No meio delas estava o pequeno Miguel. Diariamente quanto eu chegava do trabalho, por volta das 19 horas, o Miguel, de quatro anos, estava lá. Parado na borda da baixa cerca de madeira branca que ficava mais ou menos na altura de sua cintura.

Eu estacionava a minha Shadow (a Poposuda) na frente da minha janela, exatamente na varanda da casa. De braços cruzados, brilho nos olhos e uma feição séria ele pedia para ‘abaixar os faróis’.

Eu baixava os faróis, cumprimentava ele apenas balançando a cabeça, mas ele nada respondia. Eu guardava a moto e ele observava tudo, sempre de braços cruzados sem mover um músculo do semblante. Depois eu desligava a moto, tirava o capacete, a balaclava, as luvas, abria a jaqueta e o cumprimentava. Neste momento ele falava comigo. Ou balançava a cabeça em sinal de cumprimento ou soltava um grito de guerra que ensinei a ele – Seria mais ou menos como ‘UH, RHAPP’! E ‘batíamos’ uma continência.

Eu entrava e ia cuidar das coisas de casa. Ele ia fazer as coisas dele. Certa vez me preocupei com o risco dele se queimar na descarga da moto, mas nunca aconteceu e tive a curiosidade de saber. Sua mãe disse que ele, depois que eu entrava, pegava o carrinho dele movido a bateria – que ele mesmo pilotava – e fazia o mesmo caminho da moto. Parava em frente a ela e cruzava os braços e continuava olhando por um tempo. Depois saia.

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Ninguém sabia o que ele pensava. Sua mãe comprou uma réplica de moto igual a minha e deu pra ele. Esta é o único brinquedo que ele não brinca e nem deixa brincarem. Fica guardada ao lado da sua cama, na caixa, onde ele dorme e acorda olhando pra ela, segundo seus pais que também são motociclistas, mas atualmente sem moto.

Era assim todos os dias. Eu saía cedo e ele corria para ver a moto sair. Eu saia de casa já todo equipado e cumprimentava ele com um -“Salve, motociclista!” Ele fazia um sorriso de canto de boca, balançava a cabeça e cruzava os braços. Apenas olhava.

Na volta era a mesma coisa. E assim eram todos os dias até que um dia eu enviei a moto na cegonha pra Resende e cheguei a pé. Ele parou, olhou, pensou e perguntou: “Cadê a moto, Luis?”. Eu não sabia se ele entenderia a logística da minha mudança então decidi dizer que ela havia ido ao Doutor dela para tratar um dodói e depois ela iria para a minha nova casa. Eu não sei se ele entendeu, mas não falou mais.

Vinte dias depois eu falei com sua mãe para saber se tinham parentes na Ilha da Madeira (por conta da inundação) e perguntei pelo ‘motociclista Miguel’. Disse a ela que sempre que entrava na garagem lembrava dele na porta esperando a moto chegar. Para minha surpresa e emoção ela disse que vez ou outra ele pára no mesmo lugar e fica olhando para o vazio, de braços cruzados, de semblante fechado. Não diz nada. Às vezes faz ‘vrrrruuuummm’ e diz ‘UH, RHAPP’! Bate a continência e volta a brincar.

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Marejei os olhos, pois lembrei que eu era assim também. Não sei se o verei novamente, mas ambos criamos uma amizade onde a moto foi o principal elo. O menino e a moto, a moto e um ´tio´, mas que amam a mesma coisa.

“Vrrrruuuuuummmmmm! UH, RHAPP”! A gente se vê na estrada, motocicllista,Miguel!

Luís Sucupira
Motociclista desde os 18 anos. Jornalista e apaixonado por motos desde que nasceu.