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Geraldo Tite Simões

Eu nunca esqueci. Tinha 16 anos (nossa, como faz tempo!) e uma Yamaha AS3 125 de dois cilindros, que raramente conseguia estar com os dois funcionando ao mesmo tempo. Meu tio avô não era motociclista, mas tinha uma casa em Bertioga, litoral de São Paulo, na Praia do Indaiá. O que essas duas coisas têm a ver? Simples, num feriadão decidi descer para Bertioga com minha Yamaha.

Obviamente que teria de levá-la numa carreta, porque mesmo sendo em 1975, os menores ainda não podiam pilotar. Mas às vésperas do feriado cadê uma carreta para alugar? Nem em sonho. Teria de ir rodando por estradinhas vicinais, fugindo da polícia.

Para não fazer a viagem sozinho convidei uns amigos. O Edu, com sua Honda CB 125S, o Jacques e sua namorada com uma invejável Honda XL 250 Motorsport e outro, que lembro apenas pelo apelido carinhoso de Garibaldo – graças a sua semelhança com o personagem da Vila Sésamo -, com uma Yamaha DT 125. Vejam vocês, duas motos trail e duas street para rodar no asfalto e, mais tarde, na terra. Quem se daria melhor?

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Como sempre acontecia quando preparava uma viagem, choveu canivete aberto na véspera da partida. O que fazer? Desistir? Ir em frente? Minha sábia mãezinha, a exemplo de todas as mães do mundo desfiou um rosário de recomendações, tentando demover-nos da idéia de viajar sob chuva porrencial. Dizia: “a estrada vai estar enlameada, vocês vão atolar; os rios estarão cheios, as pontes serão levadas pelas águas; o mar vai estar de ressaca, a maré vai subir; o mundo vai acabar, o mar vai virar sertão, o sertão vai virar mar, etc e tal”.

– Sim mãe, e um dragão irá sair do mar e nos engolir numa nuvem de fumaça.

Ora, mães, são todas iguais, só muda endereço.

Partimos de São Paulo numa fria e chuvosa madrugada, com destino a Riacho Grande para descer a tenebrosa Estrada Velha de Santos, esquecida por Deus e pelos policiais. Não parava de chover e caiu uma neblina tão densa que podíamos cortar com faca em blocos. Minha roupa de chuva tinha tantos furos que era inútil. Assim chegamos em Santos, encharcados e mal humorados. A cidade nos recebeu com um trânsito sufocante de carros, gente e policiais. O plano era atravessar a balsa do Guarujá, mas sabíamos que dificilmente escaparíamos das barreiras policiais na estrada do Guarujá a Bertioga. Por isso decidimos acampar no Guarujá para sairmos no meio da madrugada, quando os policiais estariam no aconchego de seus lares quentinhos e secos.

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O problema era colocar cinco pessoas numa barraca minúscula para duas pessoas nanicas. Dividimos a barraca e com o sobre-teto fizemos uma segunda barraca. Não tinha chão, mas ninguém conseguia deitar mesmo.

No meio da madrugada partimos e, como havíamos previsto, os policiais definitivamente não eram espécimes animais chegadas às adversidades naturais, como chuva, frio e borrachudo. Atravessamos a balsa de Bertioga com a sensação de que em poucos minutos estaríamos numa casa quentinha e alguma tia bondosa iria nos preparar um lanche saboroso, com bolo, Nescau, café e todas aquelas gostosuras inerentes às tias e avós. Naquela época havia apenas um esboço do que hoje é a estrada conhecida como Santos-Rio e os carros rodavam pela praia. Isto é, seria assim, não fosse por uma ressaca das bravas, que levou a maré às alturas, com ondas havaianas varrendo toda a areia. Imediatamente lembrei de mamãe “a maré vai subir…”. Começariam naquele momento, uma a uma, a se realizar todas as profecias maternas. Os que estavam montados em motos todo terreno (como se chamava naqueles tempos) votaram a favor de seguirmos pela praia, esperando até a maré descer um pouco. Esperamos, esperamos muito, até que finalmente o mar começou a recuar, formando uma avenida de areia mole onde as motos todo terreno rodavam e as outras, incluindo a minha, caíam. E ainda tínhamos de atravessar os canais, que pareciam afluentes do Rio Amazonas. No terceiro canal a poderosa XL 250 Motosport cinza e preta naufragou solenemente, como um Titanic. Justo ela, a mais portentosa das motos todo terreno atolou feito um Gordini 66. Tiramos a moto do canal, com a água cobrindo parte das rodas e molhou nossas partes baixas, única região que ainda sobrevivia à umidade.

A chuva, que tinha dado uma leve trégua, voltara. O que não voltava nem a pau era o funcionamento do motor da XL 250 Motorsport, já não tão admirada assim. Dá-lhe pedalada e… nada. Empurramos e… nada. Rebocamos na traseira de um jipe e… nada. O dono da moto era metido a mecânico e decidiu desmontar tudo: carburador, vela, platinado, rebinboca da parafuseta, e… nada. Até que apareceu um santo homem munido de um tal de WD 40, coisa ainda desconhecida da maioria. Pulverizou no chicote elétrico e… VIVA! Funcionou.

Por três votos contra um (do pentelho da XL 250) decidimos abandonar a praia para seguirmos pela estrada de terra, que hoje é a Santos-Rio, mas que naquela época era a Santos-Inferno-Com-Escala-No-Purgatório. Um mar de lama. Aquele barro grudento e vermelho que junta entre o pneu e o pára-lama das motos street, travando tudo. Lembrei da minha mãe, “as estradas vão estar enlameadas, vocês vão atolar”. A vingança da mãe, parte II.

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Tínhamos de parar a todo instante para tirar o barro da balança traseira, fazendo uma incrível média horária de 12 km/h. Escurecia. E eu não sabia qual rua entrar para chegar ao Indaiá. Escureceu completamente. E passamos a entrada. Passamos tão batido que paramos muitos quilômetros à frente, na Barra do Una, diante de uma… PONTE QUEBRADA! As águas do rio levaram a ponte embora. Lembrei da minha mãe, “as pontes vão ser levadas pelas águas”. Mas o que era aquilo? Por que minha mãe não preenchia os volantes da Mega Sena?

Sem esperança, nem a menor noção de onde estávamos, decidimos fazer aquilo que até aquele momento tínhamos evitado: entramos em pânico!

Tínhamos duas opções: voltar atrás e tentar achar a casa do tio-avô no meio do barro e da escuridão; ou acampar por ali mesmo. Chovia e não havia camping por perto, mas uma Igrejinha caiu, literalmente, do céu. Entramos, meio pedindo licença, meio invadindo, porque não havia viv’alma por perto e montamos acampamento na sacristia. Usando um remédio feito para resolver um problema de fungos no meu cabelo – sim, eu tinha cabelos! – como combustível, fizemos uma fogueirinha dentro da Igreja e rezamos muito para que o dia seguinte amanhecesse com sol.

Funcionou! Na manhã seguinte acordamos com os raios de sol invadindo a Igreja e saímos para pesquisar o lugar. O Jacques era o mais velho e chato da turma e decidiu seguir viagem com sua XL e a namorada. Os outros três renitentes decidiram voltar e achar a casa de Bertioga. Conseguimos comprar gasolina de alguns moradores porque o único posto estava bem longe dali, e voltamos em plena luz do dia, rodando ora pela lama, ora pela areia da praia. Cansado de tanto cair no barro, pedi para experimentar a DT 125. Uma maravilha! Pneus com sulcos maiores, guidão largo, suspensões eficientes, tudo convidando a fazer bobagens. Foi o que fiz. Comecei a passar nas imensas poças d’água acelerando só para ver a água espirrando. Legal! Passei uma, duas, até a terceira, que era bem funda e tinha um tronco de eucalipto atravessado, totalmente encoberto pela água marrom. A roda bateu no tronco, a moto parou e eu continuei por cima do guidão, num duplo mortal carpado, não sem antes fazer ovos estalados no tanque.

Recuperado do baque, continuamos até finalmente encontrar a casa. Foi uma festa familiar, principalmente porque sabia que algum tio estaria por lá com uma perua Kombi para levar minha moto de volta para São Paulo. Quando contei toda tortura da noite anterior, rodando sem rumo pela estrada enlameada, um dos tios perguntou:

– Mas por que você não seguiu os postes da rede elétrica?

– Hein? postes? como assim?

– Simples, era só olhar para cima, seguir os fios pela estrada e virar à direita quando os fios também vinham para cá, porque a luz elétrica termina exatamente aqui no Indaiá!

Demorou muito tempo para que meus amigos voltassem a falar comigo…

Tite
Geraldo "Tite" Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos BikeMaster e Abtrans.