Domingo, 17 de fevereiro de 2013. Sou acordado pelo celular através do som característico das mensagens de SMS. É Jan Messias informando que está pronto para viajar a Saboeiro. Respondo que em meia hora estarei pronto. Enquanto me preparo vou pensando no que vou encontrar. Confesso que não espero muita coisa do destino da nossa aventura além de uma paisagem bonita e de uma curiosidade sobre o padre que guardava vinho debaixo d’água em grotas submersas no Rio Jaguaribe.
Pegamos a estrada. O domingo estava nublado e fresco, coisa rara na região Centro-Sul. A velocidade das motos não passava dos 90 km/h já que eu acompanhava o Jan numa 125cc. Isso permitiu que degustasse a paisagem lentamente e apreciasse o cheiro de mato molhado que enchia o ar após as primeiras chuvas do inverno nordestino. Serão 81 km até lá. A estrada é tranquila e boa até chegar à entrada para Saboeiro. De lá são mais 8 km até a sede da cidade em uma estrada sinuosa, com buracos. No meio do caminho encontramos os primeiros motociclistas da cidade andando sem capacete e as motos sem retrovisores e com mais de duas pessoas em uma moto.
Alguns minutos depois chegamos à Saboeiro. A cidade que é uma referência a uma árvore ‘que faz sabão’ já que não tem na sua sede quase nenhum exemplar da sabonete (Sapindus saponaria L.) antes abundante na região. Somente uma sobrou e a encontramos em uma escola preservada pelos alunos. O restante foi dizimado. A Árvore do sabonete chega a 9 m de altura e é conhecida também como pau-de-sabão, saboneteiro, sabão-de-macaco, sabonete-de-soldado, jequitinhaçu, fruta-de-sabão, sabão-de-soldado. A casca, a raiz e o fruto são utilizados na medicina popular como calmante, adstringente, diurético, expectorante, tônico, depurativo do sangue e contra a tosse. Os frutos servem para a lavagem de roupas, por possuírem saponina (substância com propriedades similares às do sabão). Além disto, é utilizada na arborização urbana.
As origens da cidade remontam ao início do Século XVIII, tendo como fundadores e primeiros habitantes Domingos Rodrigues e seu amigo Ventura Rodrigues de Souza. Mas Saboeiro seria apenas mais uma cidade com nome engraçado se não fosse pela chegada de um padre holandês chamado de GERALDO SLAG.
Padre Gerald Slag (nome holandês depois aportuguesado para Geraldo) chegou à Saboeiro em 1963 em meio à fome, miséria e com sua população ainda sofrendo com os efeitos da seca. Missionário da Ordem da Sagrada Família, Geraldo Slag, era de família rica e tradicional na cidade de Enter, na Holanda, que fica a poucos quilômetros da fronteira com a Alemanha. A cidade fundada em 1200 já viu de tudo inclusive a invasão nazista na Segunda Guerra Mundial. Hoje Enter é a cidade que detém o recorde de ter feito o maior tamanco de madeira do mundo – tradição holandesa de fazer sapatos de madeira.
A esperança chega à Saboeiro
Movido pelo sentimento humanitário, Padre Geraldo Slag desembarca em 1963 em Saboeiro e encontra a maioria dos quatro mil habitantes, à época, vivendo em condições bem difíceis.
Rapidamente Geraldo acionou seus familiares e amigos em Enter que prontamente atenderam o seu pedido de ajuda e enviaram donativos, comida, roupas e remédios. A cidade e as pessoas começaram a entender quem era aquele padre que falava ‘difícil de entender’, mas que trazia o que eles mais precisavam – comida e amor.
O padre Geraldo Slag adotou a cidade e seus habitantes como sua família e mudou para sempre a vida de muita gente. Ele era o médico da cidade, o farmacêutico, o guia espiritual, apaziguador e juiz de paz, assistencialista e de vez em quando assumia na marra as funções de prefeito. Bastava mexer com seu povo para ver o padre tomar à frente.
Padre Geraldo cercou-se de pessoas da sua confiança. Para ter certeza que seguiriam suas recomendações e não cairiam na tentação de serem vencidas pelo demônio da corrupção, muitas dessas pessoas foram passar uma boa temporada em Enter, na Holanda.
A cidade do Padre Geraldo Slag
Tudo naquela cidade tem o dedo de Geraldo e mesmo depois de 13 anos da sua morte, ocorrida em 26 de fevereiro de 1999, as pessoas que conviveram com ele ainda se emocionam ao lembrá-lo. Foi nessa caminhada que encontramos a Dona Maria Augusta Braga, 81 anos, lúcida, de passos rápidos e em boa forma. Conhecida como ‘Dona Maroca’ ela foi durante toda a estadia do padre (36 anos na cidade) em Saboeiro a sua secretária e ‘braço direito e esquerdo’ como falam. Era nela que ele confiava cegamente e era ela que poderia esclarecer sobre o mistério da adega submersa.
Dona Maroca ainda hoje é fiel à memória de Geraldo. Por vezes desviava o assunto, fugindo das minhas perguntas e indicava outras pessoas para me darem informação sobre o padre, mas eu sabia que estava diante da pessoa que podia falar dele com a credibilidade que eu precisava. Também dei as minhas voltas, indo e vindo em torno de vários assuntos; puxa daqui, sorri acolá até que acabei ganhando sua confiança. Minha intenção era saber sobre a lenda dos vinhos que o padre Geraldo escondia no Caldeirão.
A adega submersa do Padre Geraldo
Enólogo de carteirinha o Padre Geraldo tinha como hábito banhar-se nos caldeirões (formações rochosas desgastadas pela correnteza do rio que quando secam formam piscinas e pequenas cachoeiras naturais). Ocorre que o vinho que chegava da Holanda não durava muito a uma temperatura média de 39 a 40 graus. Foi então que o padre decidiu fazer a sua adega nas grotas do caldeirão. Lá descobriu que, se colocasse a uns 4 metros de profundidade o vinho ficaria conservado a 22 graus.
E assim foi feito e durou por vários anos, pois não havia geladeira e a energia elétrica ainda demoraria um tanto para chegar à Saboeiro. Assim se formou a lenda. No começo ninguém via o padre chegar com os vinhos, que ele escondia magistralmente por baixo da batina. Ao mergulhar no Caldeirão, ao chegar à profundidade ideal, Geraldo, que era dotado de grande fôlego, retirava o vinho da batina e o guardava na grota submersa.
Como mergulhava em um ponto e saia em outro as pessoas nunca desconfiaram de nada. Mas o melhor estava por vir. Nas vezes que não mergulhava de batina ele saia debaixo d’água com duas garrafas de vinho, já sem rótulo devido à ação da água. Foi aí que as pessoas começaram a achar que ele era milagreiro. Sim, o Padre Geraldo Slag, que era tudo na cidade, ‘também fazia aparecer vinho engarrafado de dentro do rio’. Seria o primeiro milagre de Jesus acontecendo de novo?
Para um povo carente das coisas do corpo e da alma, o mínimo que se faça diferente e se vista de uma esperança de melhoria e redenção será vista como a possibilidade de um milagre de Deus. Padre Geraldo sabia disso e preocupado com essa repercussão, desfez o mistério, mas nunca informou a ninguém onde ficava a sua adega submersa. O fato é que até hoje procuram o lugar e os vinhos que, dizem alguns, ainda estariam lá embaixo.
Pois este mistério findou. Voltando a conversa com Dona Maroca, ela não se conteve e em voz suave e em tom baixo, pois Dona Maroca fala alto e é muito empolgada, me disse: -“Filho… quando Padre Geraldo descobriu que estava doente dos pulmões e não poderia mais mergulhar ele foi ao caldeirão e tirou todas as garrafas de lá. Não tem mais vinho e ninguém sabe onde ele escondia. Nem eu. Nunca soube. Ele nunca me disse.”
A força de um exemplo que ainda provoca lágrimas
Andar por Saboeiro é impregnar-se pelas obras do ‘Padim Cíço’ holandês. Tudo carrega seu nome. Desde praças a ginásios, passando por escolas, quadras de esportes, postos de saúde e até crianças são batizadas em sua homenagem.
A cidade neste domingo de fevereiro estava melancólica. Eu e Jan Messias percebemos isso. Ao lado da Capela da Sagrada Família, erguida com recursos oriundos de amigos e familiares do Padre Geraldo ocorria um velório. Tudo estava fechado. Apenas uma ou duas mercearias teimavam em abrir, mas logo que o cortejo fúnebre desceu no rumo da Igreja de Nossa Senhora da Purificação as portas eram abaixadas em sinal de respeito.
Ao lado, bem no alto do centro de Saboeiro, na Capela da Sagrada Família está sepultado o Padre Geraldo. Pedi permissão para abrir a capela. Logo fui atendido por um jovem rapaz. Ao lado do altar está o seu último descanso. Em cima do túmulo uma foto que retrata a sua última imagem. Enquanto conversava com ele vejo entrar uma senhora vestida com blusa branca trazendo no peito a marca da Sagrada Família. É Dona Maria Dorismar da Silva Alves, outra servidora da Igreja que também conviveu com o Padre.
Enquanto conversávamos, aos poucos, a emoção tomava conta dos seus olhos que mudaram de uma córnea límpida e branca contrastando com as pupilas pretas, para um tom rosado de emoção. Neste momento o sino toca avisando que o cortejo que acontecia na casa ao lado sairia. Dona Dorismar não se conteve e deixou escapar a primeira lágrima. Diz-me ela: “Não consigo ouvir este sino tocar e não encher os olhos d’água. Nós não éramos nada antes dele. Hoje somos um povo melhor, mais feliz. Temos muita saudade dele.” E olhando para a foto do túmulo descem mais lágrimas. “Como você faz falta Padre Geraldo…” Finaliza ela ao lado do marido e do filho que abaixam a cabeça em sinal de respeito.
Dona Dorismar é uma das que foi à Enter para ser preparada para gerir as doações. Quem pensa que o Padre Geraldo doava apenas comida, remédios e roupas, engana-se. Ele doou várias casas a pessoas carentes. Ele ia a Iguatu quase que toda semana buscar doações.O padre que mergulhava no caldeirão e aparecia com duas garrafas de vinho, também multiplicava pães. Quando chegava de Iguatu trazia o carro cheio de pães novos e secos e tudo era aproveitado para alimentar os seus filhos – homens, mulheres e crianças.
No seu leito de morte, depois que não pôde mais rezar a missa, Padre Geraldo Slag fez a Dona Dorismar seu último pedido: -“Quero morrer aqui e ser enterrado aqui ao lado do meu povo. Por favor, nunca deixem as minhas crianças passarem fome e as obras da pastoral abandonadas. Essas pessoas precisam disso.”
No meio dessa emoção entra a Dona Albertina Arraes. Vestida com vestido escuro, vinha do velório. Ao saber na nossa presença imediatamente já chegou à entrada da capela com a mão no peito esquerdo dizendo em alto e bom tom: -“Eu não era nada. Não tinha nada. Era miserável e passava fome e ele me deu tudo que eu tenho hoje.” Um testemunho gratuito, emocionado, espontâneo dado a um estranho que não trazia microfone e nem estava na TV.
Na mesma hora parei a conversa com a Dona Dorismar e passei a ouví-la. Ela já chegou perto de mim em lágrimas contando os fatos e suas obras para aquele povo.
A morte do mito não extingue a obra
Esta é uma das poucas histórias onde a morte do mito não extingue a obra. Em silêncio e de forma discreta como sempre viveu e ajudaram os pobres, a família de Geraldo Slag e seus amigos até hoje continuam a manter as obras dele vivas. Diariamente são distribuídos 50 litros de leite às crianças carentes (nada vindo do governo) e mensalmente chega ajuda vinda da Holanda. A cada dois anos, parentes e amigos de Slag vêm de Enter para Saboeiro para fiscalizar e reforçar as doações.
Lembrei-me de Padre Cícero e da forma como cuidava da sua gente. Aprendi estudando a cultura nordestina que quando o Estado se ausenta e abandona seu povo ele está entregue a duas sortes – a primeira delas é a sua própria sorte e assim acabarem mortos de fome ou formando filas de retirantes em busca de uma vida prometida. A outra é a chegada de homens como Geraldo Slag que fazem do sacerdócio e do verdadeiro espírito cristão de entrega e amor ao próximo uma máxima que pode manter corpos vivos e almas saudáveis.
Nesta aventura, da qual pouco ou quase nada esperava, eu e Jan Messias em nossas motos saímos de lá emocionados e felizes por saber que naquele lugar que o mundo quase esqueceu, ainda vivem cerca de 16 mil pessoas, a esperança e o exemplo deixado por alguém que veio do outro lado do mundo, que deixou sua vida rica e abastada, por que não dizer, nobre, para dedicar-se aos pobres.
Foi com esta sensação de ter vivido e pisado nas pedras onde um misto de Francisco de Assis e Padre Cícero cunhou um novo destino de um povo que entrei na Matriz e de joelhos agradeci a Deus por todas as vidas que o Padre Geraldo Slag salvou da morte certa.
Da árvore que deu nome a cidade nada sobrou, mas a semente plantada por Padre Geraldo Slag ainda frutifica adubada e cuidada por pessoas de um mundo distante, de fala diferente e que mesmo em países distantes, separados por milhares de quilômetros relacionam-se como sendo da mesma família. A mesma Sagrada Família que Slag deixou pra sempre plantada como uma árvore que não pára de dar os verdadeiros frutos da vida.
Eu e o Jan voltamos para Iguatu com a certeza de que nossas vidas mudaram mais uma vez depois de ter vivido um caldeirão de emoções em Saboeiro, Centro Sul do Ceará.
SERVIÇO: Esta é a segunda de uma série de 24 matérias produzidas sobre destinos inéditos no Centro-Sul do Ceará em parceria com o Motonline.
APOIO CULTURAL – FAB Energético da Foverer (Representante Forever Iguatu: [email protected]), Make Safe – alarmes presenciais, Icamotos e Posto Icavel.
- Você pode visitar os destinos descritos na série de matérias quando vier para o Iguatu MotoFest!