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Certamente quando o amigo leitor acessa sites de motociclismo tal qual o Motonline, quer ver testes dos recentes lançamentos no mercado, viagens e aventuras bem sucedidas realizadas por motociclistas destemidos e notícias curiosas do mundo motociclístico; é o que chamamos de LADO BOM do motociclismo.

Entretanto como tudo nessa vida, o mundo motociclístico tem também o LADO RUIM, os constantes acidentes de trânsito envolvendo motocicletas e seus pilotos, que normalmente sofrem lesões sérias. Estamos acostumados a ter contato com esse LADO RUIM através da mídia, que noticia diariamente acidentes, muitos deles fatais e a grande maioria envolvendo traumas nos garupas e pilotos.

Se o motociclista acidentado não for do nosso círculo de amizades ou familiar, esse contato se resume a ler a notícia, ficar apenas momentaneamente indignado e consternado. Pouco depois a notícia cai no esquecimento e tudo volta ao normal, a vida continua. Só que muita coisa acontece depois do acidente, coisas às quais não temos conhecimento e não vivemos aquele drama.

Como eu passei por uma situação dessas, vou relatar a seguir como foi o período de recuperação da lesão que sofri, fratura da tíbia e fíbula da perna direita. Vamos lá, prepare-se para conhecer esse LADO RUIM do motociclismo, cujo risco nos acompanha cada vez que desfrutamos do  indescritível prazer de andar de motocicleta, que sempre foi uma atividade de alto risco, fato do qual todos temos consciência. Isso devido a diversos fatores como motoristas (e mesmo motociclistas) mal preparados, condições adversas de trânsito, “armadilhas” inesperadas como óleo na pista, tampas de bueiro mal colocadas, faixas pintadas com tinta inadequada e uma outra infinidade de fatores de risco. Temos que pilotar com os sentidos totalmente aguçados pois a qualquer momento estamos sujeitos a passar por alguma situação de acidente, que normalmente nos deixa sequelas, já que nosso corpo não tem a mesma proteção  que os carros ou veículos maiores oferecem.

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A situação que vou relatar neste texto aconteceu comigo em 24/11/2011, dia do meu aniversário de casamento, por volta de meio dia: Saí de moto para resolver um problema num local próximo à minha casa, vestindo capacete, calça jeans, bota e jaqueta de couro – como estava calor, não estava usando luvas. Na rua em que eu seguia tem uma curva fechada cuja visão é bloqueada por uma construção irregular que avança pela calçada, bem próxima à via de rolamento. Quando entrei na curva a uns 40 km/hora me deparei com duas meninas com seus 10 ou 11 anos tentando atravessar a rua, bem no ponto cego. Ao me verem elas se assustaram e correram em direções diferentes me obrigando a frear forte. A minha reação foi normal e esperada, considerando os meus 35 anos de pilotagem praticamente sem acidentes ou incidentes. Para meu azar bem por onde eu passava havia areia sobre o asfalto, o que provocou perda de aderência do pneu dianteiro e o chão foi inevitável. Tombinho simples, daqueles em que bastaria levantar a moto e seguir em frente.

Só que não foi bem assim; instintivamente coloquei o pé no chão, momento em que a bota altamente abrasiva “agarrou” no asfalto provocando a torção da minha perna. Caí sob a moto e de forma não intencional, protegi-a de danos maiores – por ser uma Sahara, nem quero pensar no estrago que uma ralada qualquer viria a provocar na sua grande carenagem – em seguida já pude ver o meu pé direito numa posição impossível, evidenciando uma fratura. Alguns populares retiraram a moto que estava sobre mim e chamaram o SIATE. Fui conduzido para o Hospital do Trabalhador em Curitiba e encaminhado ao serviço de emergência, uma grande sala onde eu, sobre uma maca, compartilhava o ambiente com umas outras 30 pessoas sendo atendidas por vários motivos como atropelamentos, ferimentos por arma de fogo e, principalmente, ACIDENTES DE MOTO. Pelo menos metade dos atendidos estavam ali por causa da moto.

Constatou-se na minha perna a fratura da tíbia e fíbula, agravado pelo estilhaçamento vertical da tíbia que teve 3 rachaduras que se projetavam do meio do osso até  o calcanhar. No mesmo dia passei por uma cirurgia para instalação de um estabilizador – ferragens externas que fixam o pé com a perna, evitando que movimentos possam vir a cortar músculos ou veias, que me acompanharia até a instalação de uma prótese interna, peça que demoraria alguns dias para ser adquirida. Por se tratar de uma peça importada e muito cara (R$ 9.000,00, na época, custeada pelo SUS), Somente no dia 4/12 a peça chegou e no dia seguinte fui operado para a instalação da mesma, ou seja 11 dias após o acidente.

Durante esses 11 dias fiquei instalado em uma enfermaria com mais 2 pacientes, um recuperando-se de ferimento a bala e outro com o pé necrosado em decorrência de diabetes. Todas as noites foram acompanhadas do intenso calor do verão curitibano, gemidos e choro provenientes de outras enfermarias, corre-corre de enfermeiros para atender casos de pacientes em crise, luzes acesas nos corredores, sem contar o fato de que eu não podia mexer muito a perna lesionada, o que me obrigou a dormir (ou tentar) na posição de costas, que me é bastante desconfortável. Cada vez que eu precisava ir ao banheiro era uma operação de guerra que envolvia 3 ou mais enfermeiros para me colocar na cadeira de rodas e me auxiliar no vaso sanitário. Tomar banho então, nem se fala, mesmo com o uso da cadeira apropriada para esse fim, era outra operação que exigia pelo menos 2 enfermeiros.

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Durante todo esse período não senti dores, talvez porque passei praticamente todo o tempo dopado pelo efeito de tranquilizantes – injeções de morfina na veia eram constantes. Mas asseguro ao leitor que ficar esses dias no hospital foi uma grande tortura física e psicológica. Apenas 3 dias depois da cirurgia para instalação da prótese que me acompanha até hoje já recebia alta hospitalar, indo para casa.

Pois foi a partir daí que a coisa complicou: A perna fraturada não permite movimentos pois a dor da fratura mais a dos músculos magoados impede que se tenha mobilidade – no hospital tem um exército de enfermeiros e se for preciso te carregam para onde for – mas em casa a situação era outra, dependia da minha esposa para tudo, exigindo-lhe dedicação integral. Para a realização de coisas simples eu dependia dela; tomar banho, ir ao banheiro, levantar e me transferir para uma cadeira, me locomover de um lugar para outro, fazer o curativos diários nas lesões decorrentes dos cortes para instalação da placa metálica no osso fraturado, tudo era uma maratona – tive até que instalar barras horizontais de sustentação nas paredes do WC e box do meu banheiro.

Só com muito amor alguém consegue superar o calvário ao qual minha esposa foi submetida durante os primeiros 4 meses da minha recuperação e por isso jamais, jamais eu conseguirei retribuir à altura o carinho com que ela me tratou nesse terrível período de recuperação.

Achar uma posição na cama para dormir era uma tortura, sair de casa então, era muito complicado e só foi amenizado porque um amigo me cedeu uma cadeira de rodas que passei a usar praticamente o dia inteiro durante mais de 3 meses – a cadeira de rodas, apesar de todos os benefícios oferecidos tornou-se a minha prisão, passei a depender dela para tudo – ainda bem que conseguia passar com ela nas portas do meu apartamento.  As muletas ainda não eram úteis porque minha baixa resistência física aliada ao meu coração debilitado, me impingiam extremo cansaço – andar de muletas é muito cansativo e exige um bom vigor físico.

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Em meados de março/2012 minha resistência física e cardíaca melhorou muito e pude começar a andar de muletas com mais desenvoltura, o que me deu mobilidade para poder iniciar passeios no pátio e arredores do prédio onde moro, mas sempre em curtos percursos de no máximo uma quadra.

Em junho/2012 uma nova conquista: comecei a dirigir. Apesar de ainda não poder andar sem auxílio de muletas o meu pé já oferecia condições de controlar o freio e o acelerador – foi a minha libertação pois pude começar a ir a todos os lugares sem precisar de um motorista, eu podia ir sozinho, acompanhado das muletas ou cadeira de rodas, dependendo do lugar. Foi nesse período que pude sentir na pele como as pessoas portadoras de necessidades especiais são desrespeitadas em nosso país. A vagas a eles destinadas não são respeitadas e, pasmem, em sua grande maioria por pessoas de mais idade, acima dos 50 anos. Os jovens raramente utilizam essas vagas indevidamente.

No mês de julho, 8 meses depois, não dependia mais das muletas, andava sozinho, mas ainda mancava bastante pois não havia readquirido todos os movimentos de equilíbrio do pé. Seriam necessários ainda mais uns 3 ou 4 meses para que tudo voltasse a ser como antes. Havia a possibilidade de ter que me submeter a nova cirurgia para retirada da placa metálica, mas isso não chegou a acontecer.

Pois é amigos, muita coisa acontece depois daquela notícia que lemos despretensiosamente na mídia, tem muito sacrifício e sofrimento “escondidos”, que a gente não toma conhecimento e sequer consegue dimensionar o grau de transtorno a que nossas famílias são submetidos.

Não canso de salientar que sem o apoio da família, de pessoas se dedicando a auxiliar o acidentado durante sua convalescença tudo seria muito, mas muito pior. Agora imagine como é quando o acidentado é um motoboy, trabalhando na informalidade, sem registro em carteira, sem a garantia financeira durante a recuperação, muitas vezes sem uma família para dar o apoio necessário. Dá até arrepio só de imaginar.

Rezo todos os dias para que nenhum dos meus amigos tenha que passar pelo que eu passei; foi um período infernal na minha vida e nas das pessoas com quem convivo. Mas tudo isso faz parte da vida e, não importa o infortúnio, temos que encarar de frente, com coragem, serenidade e perseverança.

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Obs.: Para a discussão sobre esse assunto, criamos um tópico no fórum para os motonliners. Clique aqui para acessar o tópico.

Mário Sérgio Figueredo
Motociclista apaixonado por motos há 42 anos, começou a escrever sobre motos como hobby em um blog para tentar transmitir à nova geração a experiência acumulada durante esses tantos anos. Sua primeira moto foi a primeira fabricada no Brasil, a Yamaha RD 50.